domingo, 22 de abril de 2012

Sobre o gato que fugiu da Varanda da Palmira


…«Num outro quadro, exposto em 1931, repetiu o cenário da sua decantada Varanda dos rouxinóis, que, como vimos, se encontra no Brasil, sob o mesmo tecto que alberga o Emigrante, o da elegante residência do Snr. José Augusto Prestes. À costureira dos rouxinóis, cosendo entre aprendizas e glicínias, e afago suave da vista que nele poisa, sucedeu a Varanda florida, pintada no mesmo sítio. Está no Casal de S. José, do Snr. Dr. Eurico Lisboa, na Parede. Uma rapariga ao cimo duns degraus, sentada de costas, a ver passar uma procissão no fundo da rua assoalhada. Outras figuras de mulher, um gato, muros alvejantes, uma lata velha florida, mais flores, muita luz.»…

Manuel de Sousa Pinto, Últimos anos de MalhoaConferência feita no Salão de Festas da Associação de Socorros Mútuos Rainha D. Leonor, das Caldas da Rainha, na noite de 28 de Abril de 1934. Caldas da Rainha, Tipografia Caldense, 1934. p.17


Em 1934, cerca de seis meses depois da morte de Malhoa, no dia do seu aniversário natalício, em que este, se ainda vivesse, completaria 79 anos, Manuel de Sousa Pinto proferiu, perante assistência atenta, veneranda e obrigada, como timbre da altura, num Salão das Caldas, sob a batuta de António Montez, incansável dinamizador do Museu, uma palestra sobre os Últimos anos de Malhoa, logo publicada em livro - tão logo, que quatro dias depois já assinava o exemplar destinado a D. Mª. José, a irmã sobreviva de Malhoa.
Às tantas, Sousa Pinto descreve-nos a Varanda Florida, 1930. Fala das figuras femininas, da rua, do sol, dos muros caiados, das flores que dão nome à coisa, da luz que inunda o quadro e de um gato.

Hoje, passadas oito décadas, ao olharmos para o quadro [1], vemos lá tudo isso… menos o gato!?
Sousa Pinto tresleu? Abusou do Gaeiras antes de ir para a conferência? Precisava de consultar Anastácio Gonçalves? - Não parece - se até viu uma procissão junto à Cruz de Ferro, no começo da ladeira que desce para a Vila!



Se olharmos, agora, para o Estudo deste mesmo quadro [2], verificamos que a atitude das raparigas é já a de dar atenção curiosa ao que se aproxima ao fundo do largo, mas o que seja ainda se não vê, e a Cruz de Ferro ficou esquecida.
Apercebemo-nos também de uma maior preocupação com o estudo das arquitecturas envolventes, nas casas do lado do Luiz da Laurentina – mestre pedreiro e músico da Filarmónica – ou na da Comadre Aurélia, do lado oposto, com o registo das antigas escadas exteriores. Damos facilmente conta da ausência da terceira cachopa, dos lenços garridos nas cabeças ou das flores que hão-de crescer na panela de ferro, pormenores que animarão, pontuando de cor, a versão final. Mas, bichano, nem vê-lo! Ou será que, antes, está ali, meio escondido, ao colo da moça de chapéu de palha?!

Voltando ao quadro definitivo, o que primeiro nos surpreende é a luz. «Muita luz», nas palavras de Sousa Pinto.
A Malhoa não bastou a melhoria da meteorologia, registada num céu mais limpo e luminoso. Com mestria, abre o campo de visão do observador. Mais que o ligeiro recuo do enquadramento, altera a “objectiva” com que fixa a cena – serve-se aí de uma 35mm, ou mesmo de uma 28mm, diríamos hoje. Os planos caiados próximos aumentam, reflectindo ainda mais luz. As fachadas sobre o largo de S. Sebastião, menos definidas, só os panos, acompanham o desvario lumínico – de tal sorte que um pouco de almagre junta à calda de caiação de uma das casas. É uma primeira nota de cor, que se espalha ainda mais forte no grande tecido que a rapariga parou de costurar, e que agora vemos já na sua plenitude. Com tanta luz, a cor pode saltitar livremente. Os vermelhos, nos seus diversos matizes, do pano aos lenços, do pote das sardinheiras e dos cravos à ferrugem da lata velha, vão pulando por ali. Os azuis, do cesto passam à camisa da cachopa, ao lenço, à rama do craveiro e esparramam-se no céu. “Uma pouca” de amarelo, e os verdes, mais contidos, acompanham a sinfonia de cor. Para descanso dos olhos, só o soalho da varanda e a sombra fresca que se adivinha.
Mas, e o gato? Nem esta sombra aproveita?
Aproveitar, aproveitava! Mas correram com o desgraçado!
Sousa Pinto não nos enganou. Ele bem deve ter visto o gato, ronronando, de olhos semi-cerrados, indiferente ao “barulho” da luz, no único sítio onde podia estar sossegado e à fresca… Viu, mas já não vemos.


O dito bichano, até é nosso conhecido. (Mais certo um seu antepassado, pois a cena seguinte passa-se quinze anos antes). Recuemos no tempo. Nesta mesma varanda, então dos Rouxinóis. Não pelos pássaros nas gaiolas – que deviam ser uns míseros pintassilgos… e rouxinol não é bicho de gaiola, esclareçamos – mas pelas costureiras, elas mesmas, que de tão boas cantadeiras mereciam de Malhoa o elogio de soarem como o dito rouxinol.

Se dermos uma olhadela rápida e sem grandes considerações  (que não vêm agora ao caso, unicamente felídeo) pelas Varandas dos Rouxinóis - quer sobre a versão maior [3] que tudo indica seja a que Malhoa enviou a S. Francisco da Califórnia [4], quer sobre a versão mais conhecida e maneirinha [5] - lá está o nosso amigo gato (melhor, um seu progenitor)! Não à sombra, mas ao sol - que no tempo das glicínias um calorzinho é coisa bem-vinda.

E o gato vai aparecendo mais vezes. Tem honras de estudos a solo. Este [6], de orelhas arrebitadas a ouvir o chilreio das costureiras, em 1915. Um outro, escarrapachado à sombra, já não sei bem onde… (fugiu, por ser o tal).
Voltando à Varanda Florida.
O catálogo da 28ª Exposição da SNBA, 1931, onde o quadro foi mostrado pela primeira vez, esclarece pouco. Malhoa apresenta quatro óleos (a que junta dois pasteis na secção respectiva) são eles: Varanda florida, Sessão ao ar livre, A caça, Retrato do Ex. Sr. Dr. Vicente Monteiro. E, quanto a ilustrações, preferiu as costas da discípula M. L. Mello e Castro pintando, às da costureira costurando. Por outro lado, ficamos a saber que os quatro óleos já teriam destino – nenhum consta do preçário. Sinal que, ainda no atelier, mal o verniz secava logo aparecia dono.
Assim, natural é que Eurico Lisboa fosse já o feliz proprietário da florida Varanda.

Mas, com gato ou sem gato? – Com gato, pois então!
Não esclarece o catálogo, mas tira a dúvida esta foto, do arquivo pessoal de Malhoa, preterida então pelas costas da Mello e Castro.
Quadro pronto, assinado e tudo! E com gato! Dono e senhor do pedaço, refastelado à sombra, sem cesto de costura que o incomode. Todo contentinho.
Eis pois a Varanda florida que Sousa Pinto viu, tal como pintada por Malhoa, na SNBA em 1931, ou ainda e talvez em casa de Eurico Lisboa na Parede, e que nos descreve três anos depois.
Esclarecido este primeiro mistério, outros surgem, agora de mais difícil resposta: Quem enxotou o gato? Quando ali poisaram o cesto da costura? Porquê incomodar o bichinho?
Contudo, antes, pode surgir uma grande dúvida: É o mesmo quadro? Estamos perante duas versões da mesma obra, como outras a que Malhoa nos habituou? Será a Varanda conhecida uma cópia? Ou a fotografia uma montagem? – Nada disso!
O quadro é o mesmo, só que sem gato! Basta uma observação atenta aos pormenores, da assinatura ao desenho das tábuas do soalho, da sombra projectada a qualquer outro recorte, para se perceber que nenhum “artista” os poderia reproduzir, nem o próprio! E quanto à foto, é legítima, do arquivo pessoal de Malhoa, bem guardada há várias décadas, e confirmada pelas palavras de Sousa Pinto. Ele, que viu o gato!
(E se repararmos bem, por detrás do cesto, ainda lá vemos o "fantasma" do gato a assombrar-nos a vista... )

Enxotaram, pois, o gato ao prantar no seu lugar o cesto da costura. Não haverá a menor dúvida! Mas quem? Ainda Malhoa ou alguém depois dele? Porque razão?
(E, a partir daqui, aviso já, entramos no reino da fantasia, da conjectura. Nenhum documento conhecido sustenta as teorias que se seguem. Mas, na escrita sobre Malhoa, tal já não é novidade… Allons!)

As razões poderão ser muitas. Algum acidente que tenha acontecido à tela, alguma embirrância ou alergia ao bichano… que, reconheçamos, não parece lá muito famoso em termos de desenho. E, concordemos também, o cesto com os trapos azuis introduz uma nova e bem mais interessante marcação no baile das cores que vimos atrás. Fazia falta e vem a calhar! Função que o gato pardacento não cumpria. Foi esta a razão?
Resta ainda saber se o autor da proeza foi o próprio Malhoa - se, já depois da sua morte, Sousa Pinto ainda nos fala do gato?
Tal não quer dizer nada! Natural é que Sousa Pinto tenha visto e registado mentalmente o quadro aquando da sua apresentação ou já na casa da Parede, logo nos primeiros tempos, ou ter-se socorrido de uma foto igual a esta para preparar a conferência. E, no entretanto, a tela fora alterada sem ele saber. E era o que faltava que Malhoa ou Lisboa tivessem que dar satisfações ao Sr. Sousa Pinto!
Olhando para o quadro (o que convém quando sobre algum se escreve), a pintura do cesto não destoa do resto e nada indica que não seja da mão de Malhoa. Podemos ficar, para já, descansados.
Acresce, por fim, que uma das últimas fotografias de Malhoa, tirada sob uma parreira em Figueiró, poucos dias antes da sua morte, pode vir a dar alguma ajuda. A foto é conhecida, «cliché Artur Santos», várias vezes reproduzida em quase todos os livros que se têm publicado sobre Malhoa. Só que truncada! E, ao que parece, pelo próprio autor que da chapa fez dois enquadramentos. O integral – este que agora vemos [7] - mostra Malhoa acompanhado pelo casal Lisboa. No reenquadramento conhecido, a Eurico Lisboa aconteceu o mesmo que ao gato – foi corrido!
Quer tal foto dizer que foi nessa altura que os Lisboa receberam de volta a Varanda florida, mais garrida e já sem gato? Não! Não quer. Nem diz. Mas podia…
(…E a ver vamos se daqui a mais uns aninhos, sem darmos por ela, não virá a dizer?!... Basta alguma “distracção” de nova pena erudita…)

Mai.2011. Publicado originalmente em Jan.2012. LBG.


[1] JMalhoa, Varanda Florida, 1930, óleo s/tela, 47x56, c.p. http://www.flickr.com/photos/bmfigueirodosvinhos/3653232825/in/set-72157620370345088/
[2] JMalhoa, Estudo para Varanda Florida, 1930, óleo s/tela, 30x32, c.p. http://www.flickr.com/photos/bmfigueirodosvinhos/3653232817/in/set-72157620370345088/
[3] JMalhoa, Varanda dos Rouxinóis, 1914 óleo s/tela, 126x147, c.p.
[4] A tabela, que só pode ser a da“Exposição Panamá-Pacífico”, 1915. Pelas suas dimensões generosas (6x21), tal parece confirmar que assim seja.










[5] JMalhoa, Varanda dos Rouxinóis, 1915 óleo s/tela, 45x42, c.p.
[6] in Catálogo do Cinquentenário da Morte de José Malhoa, MC-IPPC, 1983. p.93,
nºc.96
[7] José Malhoa e o casal Eurico Lisboa, no quintal do Casulo, Set./Out. de 1933. Cliché Artur Santos.

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