sexta-feira, 4 de janeiro de 2013

Turiferar ou não turiferar…

quando Fialho recusa o turíbulo



Como prometido, aqui fica na íntegra a parte do artigo referente a Malhoa, da autoria de Fialho d’Almeida (1857-1911), publicado inicialmente em A Patria, Abril de 1899, e depois em À Esquina (jornal de um vagabundo), com as suas impressões sobre a 9ª Exposição do Grémio Artístico desse ano.

Este é o artigo que fica célebre por causa das «Tristes Malhoas». Antes não ficasse. Como sempre, o fait-divers sobrepõe-se à substância, e esta outra parte é bem mais interessante. Todavia, para saciar a curiosidade, aqui fica o último parágrafo do artigo, o tal que ficou para a história. Mas que não tem grande história…


A parte sobre Malhoa sim. É um belo naco de prosa.
Claro que, no final, Fialho “blasfema”… e esta, somada a uma outra “blasfémia” - a de clamar contra os «infanticídios» a propósito das decorações no palácio Foz – tem-lhe valido a “excomunhão plena” até aos dias de hoje. O que é uma pena! Atente-se na prosa, na forma e no conteúdo, e deliciemo-nos. Poucos mais haverá que nos digam tanto.


Columbano. Retrato de Fialho d'Almeida, 1891.
Fica também o retrato do Escritor. O pintado por Columbano, pois então. Oito anos antes destas linhas.

E Os Gatos, do Simões Sob.º, 1914, em bronze, que lhe encimam o mausoléu de mármore branco no cemitério da Cuba. O gesso dos felinos que sempre o acompanharam - «… miando pouco, arranhando sempre, e não temendo nunca.» -  encontra-se no Museu de José Malhoa, oferta do próprio autor.

Chega de incenso, vamos à prosa.


«José Malhôa é um laborioso pintor, que partido de modestos recursos, e sem o ronflar de pomposos elogios, vem serenamente subindo a montanha verde onde a sua figura d’artista espargirá clarões d’uma gloria honradamente ganha a preço de labutas incessantes. Sem nunca ter ido a baptismos d’arte lá de fôra, nem parecer ter em maior conta o que boquejem d’elle por ahi, acostumou-se desde prompto a não desperdiçar em convivios de cenaculos litterarios, tempo e energias que adrede canalisadas, dão dinheiro, e virilisam o ser, por orgulhosas ensimesmações, té á consciência d’uma superioridade qualquer, intellectual, moral ou affectiva, conforme as dominantes do cérebro, da consciencia ou do coração.

Ha perto de vinte annos que assisto ás exhibições de quadros d’este artista, e vejo o esforço discreto, probo, corajoso, para suster o vôo sempre mais alto, ou pelo menos não resvalar d’alturas já vencidas, o que n’estes nossos pintores contemporaneos é pecha certa, tanto que se apanhem despachados ou célebres – venho a dizer, com doze discipulos pagos, e o logar de cabeça de pau n’alguma escola industrial. Contando apenas comsigo, mediu rigorosamente o alcance dos seus recursos e seus meios, e todo o seu aprumo de artista consiste em ter sempre á altura dos assumptos, a aptidão fulgural dos seus pinceis, isto para jámais soffrer cheques d’esthetica, ou fazer rir os que pretendera impressionar.

Salvo alguma vêz em que, por suggestão de maus historiadores, a ambição natural o levou a exprimir problemas altos de mais prá sua alçada, como n’esse quadro do Julgamento de Pombal, que é ainda assim um razoavel exercicio de pintura decorativa, Malhôa tem tido o senso de ficar modesto nos seus sonhos, e de, por isso mesmo, os ter vindo gradualmente a realizar por entre os applausos até dos seus antigos detractores.

A sua exposição d’este anno é para assim dizer o melhor resumo das suas aptidões adquiridas. Ha um talento que em vêz de força neurica, é apenas trabalho accumulado, e creaturas portanto que chegam, pela pachorra e pelo methodo, a pinaculos que outras muito antes attingiram pelo vôo. O triumpho é a meu vêr mais alto, nos primeiros, que são os desajudados de Deus, e que, sem asas, ateimaram em escalar o ceu, como Satan. Dos tres quadros que Malhôa est’anno amostra, o peor (retrato de D. Eugenia Relvas e seus filhos), é inda assim um boccado para que se póde olhar com sympathia, reconhecendo as difficuldades de agrupar n’aquella pose, as tres cabeças, e de dar á scenasinha familiar, sem mimeiras nem denguices, a ternura e idealização juvenil que ella requer. As duas velhas das Papas são um estudo da sordidez plebea, piolhosa, ramelosa, em que liquida a velhice ankilosada de trabalho, porfiando nos mistéres lazarentos da lucta pelo pão. Malhôa tem deferencias chistãs por estas cafurnas da miseria, e a lista dos seus quadros de plebe, é já numerosa, e faz mesmo uma dramaturgia humoral na pequerrucha historia da pintura portugueza, que seria curioso reunir um dia ou outro. As velhas das Papas teem um desafogo de factura e um cozido de côr, onde se vêem vinte annos de pintura, e a tranquilla hombridade d’um trabalhador sadio que procura exceder-se, e não vegeta, como alguns mysantropos maníacos, na adoração das suas proprias borracheiras. No Forno é uma nota diferente, irradiante, hillare, da adolescencia talvez d’essas mesmas mulheritas que estão já decrepitas nas Papas, e que neste quadrito primaveram ainda, como rosas silvestres, na veneziana alegria do amarello e do escarlate. É uma das coisas lindas que Malhôa tem na sua obra: tres raparigas do norte, occupadas no labor de coser brôa, sob o alpendre da casa onde os pintos vagueiam, e verduras de parreiral cortam o ceu… O desenho é muito gracil, correcto, e a rapariga da pá, meio curvada, n’uma postura cheia de perigos para o desenhista, sahe triumphantemente da experiencia, e poisa a primor, sem o menor signal de rigidez. Toda a domesticidade da scena vem para nós a rir, como evocando; a graça das mulheres brota com apetites de pêcego e fructa nova, á luz hillare que se lhe diffunde das saias encarnadas. Quão longe estamos, n’esta esfusiante e forte mocidade, da monotonia cadaverica e daltonica de Columbano, bestificado pela thuriferação incontinente[1] dos parvos, e recorrendo a artificios do antigo para nos dar illusões de original!»[2]


José Simões d'Almeida Sob.º. Os Gatos, 1914.   Bronze, sobre a cúpula do mausoléu de Fialho d'Almeida, na Cuba.


4 Jan. 2013. LBG



[1] O quantificativo, ainda presente na 1ª edição do livro em 1903, já não consta da edição póstuma, de 1923…

[2] José Valentim Fialho d’Almeida, in A Patria, 21 Abril 1899. Artigo republicado in Á Esquina (Jornal d’um vagabundo). Lisboa: Livraria Clássica Editora, 5ª edição, 1923. p.178 a 182.

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