quinta-feira, 10 de julho de 2014

Os cachopos da Fonte do Cordeiro

assíduos nas Exposições do Grémio

Acabada a aventura do Grupo do Leão «informal e sem estatutos» [1], coisa de «dissidentes», indiferentemente ou conforme se quisesse «realistas», «impressionistas», «veristas», «paysagistas» ou «naturalistas», então «rapazes ainda todos» [2], resolvida «entre boks e fumaças de cachimbo» [2] e cuja derradeira exposição corre pelos inícios de 1889 - foi tempo de associação mais formal.


Aos dez, melhor, aos onze iniciadores das Exposições de Quadros Modernos, (auto)retratados por Columbano no célebre quadro para a nova cervejaria homónima (1885), e aos quais junta por direito Alberto d’Oliveira com a inevitável prova ainda fresca do seu Catalogo Illustrado; «essa instituição» [3] protectora chamada criado Manuel exibindo «afiançada» «costelleta com hervas» [3]; e o impagável mano Rafael, amigo de sempre, divulgador sem falhas e a tempo e horas de todas as exposições, e que por essa mesma ocasião também regista o Grupo na magnífica caricatura dos Azulejos fingidos.


Aos tais onze, dizia, logo se somariam nas sequentes Exposições de Arte Moderna – e só então - as cinco «Senhoras Leoas» [4], o dito Rafael Bordallo Pinheiro e mais uma dúzia de nomeáveis artistas. Um total de vinte e nove Leões [5]– nem mais, nem menos! E batiam já à porta os de Paris, mais uns tantos do Porto e outros ainda. Era pois altura de agremiação nova, respeitável, de estatutos lavrados e tudo. Nasceu assim no início de 1890s o Grémio Artístico - então sim, com Silva Porto feito presidente, assembleia geral tutelada pela «Ramalhal figura» (que como entra, logo sai), e onde até Suas Majestades concorreriam. Coisa séria, portanto.



Então, pelo despontar da Primavera de 1891, sócios fundadores da nova agremiação, José Malhoa e Manuel Henrique Pinto participam na exposição inaugural do Grémio - e da qual Simões d’Almeida será um dos vogais do júri. Henrique Pinto mostra dois quadros: A Fonte do Cordeiro (Figueiró dos Vinhos) e A caça dos taralhões – este com assinalável e assinalado sucesso. Todavia, não fora as boas graças do Senhor D. Carlos que se dispôs a dar os 300 mil reis pedidos por ele, tudo não seria muito mais que conversa fiada - para azar de Pinto e apesar dos propalados estatutos, não se sabe porquê, não foi ainda nesse ano que se iniciou a anunciada distribuição de prémios, e a bem provável consagração dos “Taralhões” ficou eternamente adiada. 
Malhoa, por sua vez e entre outros trabalhos, apresentou Noé e Preciosa.



Aos quadros de Pinto perdeu-se o rasto. Tudo o que deles hoje sabemos resume-se ao escrito e impresso à época e a fotos preservadas no espólio que nos deixou. A Fonte do Cordeiro, c.1891, era uma paisagem de médio tamanho registando o complexo da fonte e dos tanques de rega, com o alçado quase erudito meio rococó visto de perfil, os esteios do antigo engenho já então arruinados, e o que parece ser um outro, já de recurso, feito de varais de madeira. A presença humana era dada por duas figuras femininas e seus cântaros. Uma mancha de arvoredo e os campos de cultivo enquadravam a cena. Seria hoje um documento único sobre a famosa Fonte. Já A caça dos taralhões, c. 1891 – mas por certo e como o outro pintado no final do Verão anterior - registava um rapazito descalço, deitado de bruços sobre a erva rasteira, de olhar atento na costela armada lá mais adiante, esperando pacientemente que mais um passarito lhe caísse na armadilha. Junto a ele, também pelo chão, jaziam chapéu e sacola da escola e uma mão cheia de taralhões já sem vida cujo destino seria o tacho. A paisagem era de mato rasteiro, tojos e urzes, árvores raquíticas, e muito ao longe na encosta divisavam-se as primeiras casas do povoado. Em grande formato, do que podemos adivinhar, seria uma bela duma pintura. Digna, assim e sem favor, do seu lugar na colecção Real.


Por sua vez, o quadro de Malhoa chegou até nós de boa saúde. Noé e Preciosa, 1891, é um retrato de dois irmãos, onde ele, ruço e mais velhito, a parece abraçar protegendo-a, e ela, de lenço amarrado à cabeça, partilha um pedaço de pão. Ambos sérios, suscitam ternura, não irradiam felicidade.
Com estas três telas iniciava-se a saga – era cenário, primeiro acto e protagonistas. Uma saga que se iria prolongar por uma boa meia dúzia de anos, contando as histórias de um punhado de cachopos - «o(s) filho(s) do Eduardo, então rendeiro da Fonte do Cordeiro, propriedade da família Serra» - como nos confidencia Malhoa pelo seu punho, e tendo por cenários aquelas terras ou os matos de pastorícia nas faldas do Cabeço do Peão, pelo Chão da Amoreira e sítios vizinhos.


O segundo episódio da novela chega com a 2ª Exposição do Grémio Artístico em 1892. Por certo animados pelo sucesso gerado na mostra anterior, mas sobretudo pela descoberta de tão bons modelos, vá de aviar mais do mesmo: Henrique Pinto apresenta-se então com Adormecido e A caça aos grilos, ambos datados de 1891; José Malhoa, quanto ao que agora interessa, mostra A última gota, Primeiras tentativas, Gritando ao rebanho e O almoço para o pai, todos também de 1891.







«Expõe Malhôa tambem uns quadros de genero, simples pastoraes, que parecem ter sido feitos de collaboração com o seu collega Henrique Pinto, tanto a factura d’elles se assemelha à deste artista. Houve quem chamasse áquella serie Escola de Figueiró dos Vinhos…» - disse-se então [6]. E o resto da crítica afinou pelo mesmo diapasão: «… as Primeiras tentativas e o Gritando ao rebanho [que pode ser visto hoje em dia no Museu Malhoa nas Caldas da Raínha], que várias pessoas attribuiram ao sr. Pinto, tanto elles se parecem com a Caça aos taralhões e com os dois quadros agora expostos por este artista, A caça aos grilos e Adormecido. Todos elles teem a mesma paisagem de um verde escuro, a mesma luz mais ou menos vaga e crepuscular, as mesmas figuras ao centro, no primeiro plano, ora um ora dois pequenos.» «Por isso o publico, que o anno passado soltou um brado unanime de admiração perante a Caça aos taralhões, este anno ficou bastante frio deante dos quadros enviados pelo sr. Pinto, - e tambem dos dois do sr. Malhoa.» «É que são variações de mais do mesmo thema. Ainda se fossem do mesmo artista, mas de dois!» «O caso fez-lhe espécie…» [7]
















Entendia-se, todavia, de modo diferente A última gota: «…que é de uma execução larga e bella. Um garotinho nu, sentado n’um interior de cabana, emborca a malga para lhe escorropichar a ultima gota de caldo…» [8].




















Os dois quadros de Pinto e as Primeiras tentativas, de Malhoa, podem ser vistos na presente exposição. E vê-los é bem melhor que descrevê-los.
Em todos, nestes e nos outros, o que primeiro salta à vista são os cachopos, os mesmos, «os filhos do Eduardo». Ainda o mesmo Noé, que de caçador de taralhões o é agora de grilos, ou é pastorinho que grita às cabras e adormece depois da janta. Ainda a Preciosa, que se delicia com os primeiros sons que, possivelmente, o Maximino – outro irmão um pouco mais velho – tenta tirar da flauta de cana. E mais um “artista”, mais novito, «o amigo António», o que escorropicha a malga, o que leva a merenda ao pai ou aprende com o Noé a tirar o bicho da toca. São eles os protagonistas.


Um ano mais, e na 3ª exposição do Grémio, 1893, quem sabe se pela má recepção anterior, apenas se viu uma amostra desta cachopada e num registo mais pequeno: a Preciosa, ainda com a mesma saia rosa, e «o amigo António» protagonizam uma única cena, à beira do muro «na fonte da Fonte do Cordeiro», intitulada Os curiosos, 1892. É Malhoa. E agradou - pelo menos à condessa de Proença-a-Velha que terá dado 135$000 por ele. Sabemos hoje que o quadro foi feito a partir de uma fotografia tirada por Malhoa ou por Pinto e que aquele pede por carta a este (é história já contada).

De Henrique Pinto, nesta mostra de 1893, nem rasto! O que é no mínimo curioso !? De facto, desde o início da sua apresentação regular nas exposições da Promotora (1880) até à sua morte (1912) já depois da 9ª da SNBA, esta é a única exposição onde não está presente!? Depois do mistério nunca falado da não atribuição de medalhas na exposição inaugural do Grémio e depois de mais trapalhada na seguinte – sabe-se que Malhoa recusou a «medalha de segunda classe» que lhe foi atribuída -, será que Pinto, a quem foi dada então uma «de terceira classe» precisamente pelo Adormecido, resolveu por sua vez amuar desta forma? Mais um mistério a acrescentar ao anterior…

Seja como for, no ano seguinte, na 4ª Exposição do Grémio, 1894, Manuel Henrique Pinto volta e insiste no mesmo registo: Preparativos para a caça, 1893, (também conhecido como Armando aos pássaros) é mais um episódio onde talvez ainda o Noé arma pacientemente a costela para a caçada do costume. E agora, talvez para obviar aos evidentes problemas oftálmicos do sr. João Sincero que, pelo visto, marrava no «verde escuro», um esplendoroso verde alface inunda a paisagem. Mereceu referência envergonhada da crítica e mereceu comprador. Ainda hoje corre pelo mercado.


Malhoa, por sua vez e neste particular dos «filhos do Eduardo», apresenta-nos agora o mais novito, o pequenito Venâncio brincando com uns ouriços de castanheiro, em Os ouriços, c.1894. E aqui também os verdes são outros – et pour cause!

«Agora passou a ser moda tratar mal os artistas na imprensa, e esta moda para se parecer com todas veiu importada de Paris na bagagem de um jornalista que encetou uma critica, embora illustrada e com pontos de vista elevados, exageradissima pelas comparações e pelas pretensões de querer medir pela grande bitola do Salon de Paris o nosso petit salon da rua de S. Francisco. Criticando acerbamente todos os nossos artistas não deixava de pé dois ou tres, visando, talvez, principalmente, ferir o Gremio Artistico, mas sendo em geral de uma grande benevolencia para com os amadores pretenciosos que o estragam.»
«Todavia esta critica irritante e injusta muitas vezes, não tem ainda os ridiculos de algumas outras, feitas por sujeitos que pouco enxergam de arte e vão dando bordoada de cego, macaqueando as severidades vindas de Paris, mas sem conseguirem alcançar ao menos o ar pedante e fino d’ellas.»
Com isto, e mais outro tanto, se viu Ribeiro Arthur obrigado a acabar a sua crónica sobre a 4ª Exposição, 1894 [9]. Tal seria o desvario que se apoderara da crítica - de uma e da outra.



















Depois, depois é a vez de Malhoa se dedicar À caça, 1895, possivelmente ainda com o Noé e as suas armadilhas (curiosamente a preço de saldo e com mais estória ainda por contar…). E logo, mudando-se para o outro lado da Vila, já com outra gente, nos mostrar A Olinda do lagar, 1895, com as suas trancinhas côr de fogo, rodeada de galinhas e pitos.



















Nesta 5ª Exposição do Grémio, Henrique Pinto terminaria a sua colaboração na novela de «Os filhos do Eduardo...» teimando - teimando no Noé como modelo quase exclusivo, que teima e mede forças com a cabra que finca as patas, em Uma teima, 1895, [quadro que podemos ver agora no Museu Malhoa sob o nome de Perrice]. E teimando nos verdes, nos outros, nos que ele via, nos que lhe pareciam e sentia, ele, como verdadeiramente sinceros.

















Finalmente, só na 7ª Exposição do Grémio Artístico, 1897, Malhoa se despedirá desta rapaziada. Em À passagem do combóio, 1896, reúne-os a quase todos, então já mais cresciditos: o António, o Noé, o Venâncio, a Preciosa, e a mãe Teresa com novo bebé ao colo. O quadro foi depois a Paris (1900) e naufragou na viagem de regresso. Restam dele apenas algumas fotos da época. E uma gravura francesa da autoria de Charles Baude, 1900, que é já a visão pessoal deste artista. Mais tarde, c.1905, o próprio Malhoa pintará nova versão – vendida no Brasil (1906) voltou de novo a Portugal – mas não é a mesma coisa…

















(Artigo publicado originalmente em 21 Junho 2014, in Imagens de Figueiró - o jornal da exposição patente no chamado Museu e Centro de Artes de Figueiró dos Vinhos
Revisto, completado e anotado entretanto.)
Sobre este mesmo assunto pode ainda ver, publicado aqui atrasado, isto.

10 Jul. 2014. LBG

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[1] FRANÇA, José-Augusto – O Grupo do Leão, 1880 e 81. Caldas da Rainha: MJM, 1981. Resumo da conferência proferida no MJM, em 16 Dez. 1981: «um nome comum que ficou, porém, em designação familiar, nunca oficializada – nem oficializável, já que se tratou sempre de uma associação livre, sem regulamentos nem estatutos e ainda menos direcção ou presidente titularizado.»
[2] «Z. Segredo» in Diario da Manhã, de 15 Dezembro 1881. (Trata-se de Mariano Pina e do artigo inicial onde este “dá o nome” ao «Grupo do Leão»)
[3] Ramalho Ortigão (?) in O António Maria, nº134, 22 Dezembro 1881, p.405.
[4] LEANDRO, Sandra – Como Leoas: as Senhoras Artistas do Grupo do Leão (1881-1888). in Falar de Mulheres: História e Historiografia. Lisboa: Livros Horizonte, 2008. (Artigo datado de Maio 2003)
[5] São eles, seguindo a ordem pela qual vão sendo referenciados nos sucessivos Catalogos Illustrados do Grupo do Leão: João Ribeiro Cristino da Silva, José de Sousa Moura Girão, José Vital Branco Malhoa, José Joaquim Cipriano Martins, Manuel Henrique Pinto, António Monteiro Ramalho Júnior, António Carvalho da Silva Porto, João José Vaz, João Rodrigues Vieira, Columbano Bordalo Pinheiro e José Augusto de Figueiredo. D.ª Mª Augusta Bordalo Pinheiro, Rafael Bordalo Pinheiro, D.ª Helena Gomes, D.ª Berta Ramalho Ortigão, José Júlio Sousa Pinto, Francisco Vilaça, José Moreira Rato Júnior, Júlio Teixeira Bastos, Ernesto Condeixa, Augusto Rodrigues Duarte, Adolfo César de Medeiros Greno, D.ª Josefa Garcia Greno, Carlos Reis, António Soares dos Reis, José Queirós, José Veloso Salgado, António Teixeira Lopes, Duquesa de Palmela. Estes e estas, e não outros.                     .                    
[6]  ARTHUR, B. Sesinando Ribeiro - Arte e Artistas Contemporaneos, (1ª serie). Lisboa: Livraria Ferin, 1896. p.195,196 – A Segunda Exposição do Gremio Artistico. (Reproduzindo artigo publicado na imprensa da época e datado de Maio 1892)
[7] «João Sincero» in O Occidente, nº482, 11 Maio 1892, p.107.
[8] ARTHUR, B. Sesinando Ribeiro - Arte e Artistas Contemporaneos, (1ª serie). Lisboa: Livraria Ferin, 1896. p.196 – A Segunda Exposição do Gremio Artistico. (Reproduzindo artigo publicado na imprensa da época e datado de Maio 1892)
[9] ARTHUR, B. Sesinando Ribeiro - Arte e Artistas Contemporaneos, (1ª serie). Lisboa: Livraria Ferin, 1896. p.341, 342 – A Quarta Exposição do Gremio Artistico. (Reproduzindo artigo publicado na imprensa da época e datado de Maio 1894)



segunda-feira, 30 de junho de 2014

Notícias que o não foram,

mas bem podiam ter sido…

Fica aqui uma “brincadeira”, mas uma brincadeira "séria”.
Trata-se de um conjunto de “notícias” (e das ilustradas) escritas à maneira da época, por um imaginário repórter Fulano de Tal mais ou menos conhecedor do meio e dos protagonistas, e que poderiam ter sido publicadas num qualquer jornal de Figueiró dos Vinhos entre 1880 e 1904. Pedaços marcantes de um quarto de século na vida dos quatro Artistas figueiroenses - de nascimento ou opção - dos seus amigos e familiares, evocados como notícias mais de um século depois. Os factos, as datas, os personagens, os locais e as "premonições" são absolutamente verdadeiros e baseados em documentos ou fontes credíveis. Como é evidente, adicionou-se algum “romance” facilmente perceptível. Fruí!


(Publicado originalmente em Imagens de Figueiró, o jornal da exposição recentemente inaugurada no chamado Museu e Centro de Artes de Figueiró dos Vinhos.)


Um Baptizado
A Igreja Matriz desta Vila, onde se realizou o baptizado.
Gravura do nosso colega lisboeta «O Século» [1]
Figueiró, 29 Julho 1880 – Realizou-se esta manhã, na Igreja Matriz de S. João Baptista, a cerimónia de Baptismo do primeiro filho do nosso amigo sr. Joaquim Simões d’Almeida Fidalgo e de sua mulher D. Augusta da Conceição Almeida. O pequenito, a quem foi dado o nome de José, nasceu de boa saúde pelas nove horas da manhã do passado dia 17 de Junho.
Oficiou e depôs solenemente os Santos Óleos o rev.º pe. José António Pimenta, prior desta Vila. Foi padrinho o tio materno do neófito, o conhecido estatuário sr. José Simões d’Almeida Júnior, actualmente a residir na capital do reino, e que não podendo estar presente foi representado com procuração pelo seu pai, o sr. José Simões d’Almeida, também avó da criança; a madrinha foi a irmã mais nova do pai do rebento, a jovem Maria da Conceição d’Almeida, residente ao Cimo da Vila.
Augura-se um bom futuro ao pequeno José, havendo mesmo quem afirme que seguirá as pisadas de seu tio e padrinho na nobre arte da escultura… FdT.


O sr. Malhoa em fotogra-
fia realizada no ano pas-
sado pelo conhecido ama-
dor da Golegã, o sr. Carlos
Relvas, e pelo retratado
dedicada e oferecida à sra.
D. Conceição Simões d'Al-
meida que o tem hospeda-
do e ao sr. Pinto numa ca-
sa de sua propriedade.

De visita
Figueiró, Verão 1883 - A convite do nosso conterrâneo sr. José Simões d’Almeida Júnior, encontram-se de visita a esta vila os srs. José Vital Malhoa e Manuel Henrique Pinto, promissores pintores da capital. Os referidos artistas, antigos alunos do sr. Almeida na Academia Real das Belas-Artes de Lisboa, têm percorrido em jornadas de estudo várias regiões do país na busca de motivos para os seus quadros. Vindos agora do litoral e da região do Vouga, no seu regresso a Lisboa aproveitaram o conselho e o convite do Mestre para conhecerem em boa hora a nossa linda terra. Encontram-se alojados numa casa da tia do sr. Simões d’Almeida lá para os lados de S. Sebastião.
Ao que nos dizem, ficaram encantados com as paisagens e a luz de Figueiró e não têm parado de procurar os mais pitorescos recantos da Vila e seus arredores, realizando inúmeros estudos e pinturas. Os dois artistas têm sido vistos, agarrados a tintas e pincéis, em vários trechos da Ribeira d’Alge - das Fragas de S. Simão à Foz e junto à Ribeira da Madre – e também pelo Perrecho ou pelo Areal. Ficamos curiosos em ver aqueles pedaços de Figueiró dos Vinhos na próxima exposição de quadros modernos.
Diz quem com eles lida que para o ano cá teremos de volta os dois jovens pintores... FdT.



Na exposição
«Ribeira d'Alge (Figueiró)»
quadro do sr. Pinto exposto
no salão de quadros moder-
nos do chamado «Grupo do
Leão». Um dos primeiros pin-
tados por aquele artista na 
sua visita, acompanhado pelo
sr. Malhoa, à nossa linda terra.
A gravura é cortezia do nosso
amigo, o sr.Alberto d'Oliveira,
editor do Catalogo Illustrado
 do salão.
Lisboa, Dezembro 1883 (correspondente) – Abriu por estes dias, nas salas da redacção do Commercio de Portugal, o terceiro salão do denominado Grupo do Leão, agremiação de artistas da qual fazem parte os já nossos conhecidos sr. Malhoa e sr. Pinto que, como foi na devida altura noticiado, se demoraram alguns dias deste Verão a pintar aspectos da nossa Figueiró.
Logo que nos foi possível corremos a ver os resultados daqueles dias de labuta. E agora, já envernizados e emoldurados a oiro, os pequenos pedaços de tela ou de tábua pintada parece que ganharam de novo vida. A quelha do Cortez e Ao cahir da tarde, do sr. Malhoa, O Areial, do sr. Pinto, os variados aspectos da Ribeira d’Alge, tratados ora por um ora por outro, ou O Perrecho, um curioso trecho tratado de diferentes modos por cada um dos artistas, são pormenores de Figueiró que podemos por estes dias admirar aqui mesmo no coração da capital.
Como curiosidade, assinale-se que o catálogo ilustrado indica como já pertença do sr. José Simões d’Almeida duas das obras expostas: Uma varanda em Figueiró, trabalho do sr. Pinto, e Atelier de escultura, quadro onde o sr. Malhoa retrata o atelier de estatuária do seu antigo Mestre e nosso conterrâneo.
Na imprensa lisboeta, a crítica não é lá muito generosa para com os dois artistas, em particular com o sr. Pinto. Destaca-se sobremaneira um escriba que muito parece preocupar-se com a «verdade» do que chama «a côr local». Aliás, desconfiamos bem que esta questão de «a côr local» - seja lá o que isso for – ser-lhe-á leitmotiv recorrente durante muitos e bons anos… Todavia, como nunca lobrigámos tal personagem calcorreando os campos de Figueiró, nem cremos que as photographias possam vir algum dia a ser a cores, perguntamos: como raio saberá o erudito indivíduo qual é a verdade da «côr local»? se nunca a pode realmente sentir?! FdT.


O sr. José Simões Fidalgo,
o pai da noiva, e uma das
testemunhas no assento.
Um Casamento
Figueiró, 3 Agosto 1885 – Na igreja paroquial de São João Baptista realizou-se esta manhã o auspicioso enlace da menina Maria da Conceição Simões d’Almeida com o sr. Manuel Henrique Pinto, um dos pintores que de há três anos a esta parte por cá têm vindo passar parte do Verão a pintar as nossas paisagens.
A noiva, natural desta Vila, é irmã do nosso amigo sr. Joaquim Simões d’Almeida Fidalgo e prima direita do nosso conterrâneo sr. José Simões d’Almeida Júnior, o reputado escultor da capital. O noivo, ao que nos foi possível apurar, é natural de Cacilhas, residindo actualmente em Portalegre onde é professor e director da Escola de Desenho Industrial daquela cidade norte-alentejana.
Presidiu à cerimónia o prior, rev.º pe. Pimenta, e foram testemunhas presentes no assento o sr. José Malhoa, pintor e amigo do noivo, e o sr. José Simões Fidalgo, o pai da noiva.
O novo casal, ao qual desejamos as maiores venturas, irá residir para Portalegre logo que se inicie o novo ano escolar. FdT.


Honra para Simões d’Almeida
«Superstição», o mármore da 
autoria do sr. Simões d'Almei-
da e que foi galardoado com 
Medalha de Honra no 4º salão 
das Bellas-Artes promovido 
pelo «Grémio Artístico».

Lisboa, 27 Abril 1894 (correspondente) – Encerra hoje a 4ª exposição de Belas-Artes promovida pelo Grémio Artístico. O certâmen tem estado patente nas salas da Escola de Belas-Artes desde o passado dia 14 de Março e foi muito concorrido. Como nota mais saliente, devemos referir o verdadeiro triunfo que foi a participação do nosso patrício sr. José Simões d’Almeida Júnior.
Apresentando-se com uma única escultura, a estátua em mármore Superstição, o sr. Simões d’Almeida viu não só a sua peça rapidamente vendida pela significativa importância de oitocentos mil réis – foi adquirida pelo ex.mº sr. dr. João Maria Corrêa Ayres de Campos, reputado colecionador de Coimbra – como, principalmente, viu ser-lhe atribuída a Medalha de Honra da exposição. E tal galardão é tão mais significativo quanto, recorde-se, é a primeira vez que é atribuído nas exposições do novo Grémio Artístico prémio tão elevado.
Se na exposição inaugural não foram atribuídos ainda galardões; na segunda, aquela onde a distribuição de prémios se iniciou, a Medalha de Primeira classe foi entregue ao malogrado artista António Carvalho da Silva Porto pelo celebrado quadro Barca de passagem em Serleis (Minho); já na terceira mostra igual Medalha de Primeira classe foi atribuída, então a José Velloso Salgado, pelo seu Retrato do sr. W. de Lima e que vinha já premiado de Paris. Deste modo assume o maior significado esta inédita atribuição de uma Medalha de Honra ao nosso conterrâneo e conhecido artista sr. Simões d’Almeida.
E não será de mais noticiá-lo aqui, para se não correr o risco de daqui a uns 120 anos já ninguém se lembrar mais desta Medalha de Honra e da estátua Superstição. Ou talvez por isso mesmo. FdT.


Um dos mais recentes trabalhos do sr. Malhoa, um pe-
quenino óleo que será uma das derradeiras imagens da
nossa Igreja  Matriz tal como hoje é. Pelo que temos ou- 
vido dizer, as obras a iniciar brevemente ir-lhe-ão alte-
rar de tal forma a silhouette que não mais assim a reco-
nheceremos...
Apresentação 
e Boas-vindas
Figueiró, 1898 – A comissão nomeada para tratar dos trabalhos de restauro da nossa igreja matriz, e da qual fazem parte os srs. dr. Manuel Pereira Baeta de Vasconcellos, José Manoel Godinho, Joaquim d’Araújo Lacerda, António d’Azevedo Lopes Serra, Custódio José da Costa Guimarães, Joaquim Fernandes Lopes e Manuel Quaresma d’Oliveira, acompanhada do rev. pe. Diogo de Vasconcellos, prior da freguesia, apresentou as boas-vindas, pouco após chegar na diligência do Paialvo, ao sr. Luiz Ernesto Reynaud, o arquitecto contratado por intermédio do sr. José Simões d’Almeida Júnior, a fim de dirigir os referidos trabalhos.
O sr. Luiz Reynaud foto-
grafado um destes dias em 
Figueiró.
O sr. Luiz Reynaud é, ao que nos foi possível saber, um arquitecto já experimentado. Terá sido da sua prancheta que saiu o traçado do Teatro Dona Amélia, inaugurado vai para quatro anos e que de há dois possui o mais moderno maquinismo de cinematographo da capital. Por muitos ainda julgado de arquitecto francês é, tanto quanto nos foi dado apurar, projecto deste senhor, compatriota, lisboeta de nascimento, contemporâneo na Academia das Belas-Artes dos nossos conhecidos srs. Pinto e Malhoa e possivelmente aluno de desenho de Mestre Simões d’Almeida.
Constou-nos ainda que, a par deste novo trabalho que agora abraça em Figueiró, traz o sr. Reynaud em andamento importante projecto na capital. Trata-se do anunciado elevador mecânico entre a rua Áurea e o Carmo, projecto e iniciativa do sr. Mesnier du Ponsard, reputado engenheiro portuense, e para o qual o sr. Reynaud vem estudando minuciosamente as possíveis decorações exteriores.
Desejando uma agradável e profícua estada entre nós ao sr. Luiz Reynaud, fazemos votos que trabalhos de tanta importância se não atrapalhem um ao outro. FdT.



Um dos desenhos do sr. Reynaud para o projecto
de ampliação do «Cazulo» do sr. Malhoa

Passa o «Cazulo» 
a... «Cortiço»?
Figueiró, Verão 1898 – Todos conhecem a pequenina casa construída pelo sr. Malhoa naquilo que era dos Serras e para onde ele vem passar ultimamente a estação de verão. Porta e duas janelas, quatro paredes e telhado de duas águas, uma só sala e cozinha. Para dormir, dividem o espaço com uns biombos, dizem. De tão pequenino que aquilo é, lhe chama «o Cazulo» - porque aconchegado e pequeno. Talvez demasiado pequeno.
Por isso o barraco de colmo, antigo cómodo da lavoura, mantem-se de pé e serve agora para guardar quadros e tintas em vez de enxadas e ancinhos. Mas, em tempo de chuva, mal se vislumbra lá dentro. É uma maçada.
Aproveitando a estada do seu amigo Luiz Reynaud, o arquitecto que dirige as obras da nossa Igreja, parece que o sr. Malhoa lhe pediu um projecto a fim de aumentar o seu refúgio. Da casinha actual fará atelier, mas a sério, e ao lado nasce uma verdadeira moradia toda nova, com loja, dois andares e um sótão: adega e arrumos, sala e cozinha, dois quartos e retrete, e cómodos para o pessoal nas águas furtadas.
Tivemos ocasião de ver alguns dos desenhos do sr. Reynaud - são um mimo. Pareceu-nos particularmente feliz a varanda alpendrada que abraça a frente do novo edifício, com as suas guardas em troncos de sobro retorcidos e ainda revestidos da cortiça. Será que o «Cazulo» ainda vai passar a «Cortiço»? e se vai encher do zumbido das abelhas laboriosas?! Pois labor é coisa que não falta ao Sr. Malhoa. FdT.


 Um mistério, três versões e o mau-olhado
Figueiró, cerca de 1900 – Correm desencontradas versões quanto às razões do abandono da direcção das obras da igreja matriz pelo sr. Luiz Ernesto Reynaud, o arquitecto que vinha desempenhando tal papel. Uns falam em incompatibilidades e quezílias com alguns membros da comissão, outros em dificuldades desta em satisfazer todos os compromissos assumidos, outros ainda na necessidade cada vez maior de o sr. Reynaud permanecer em Lisboa devido ao adiantado das obras do chamado elevador do Carmo. Tentámos esclarecer e não o conseguimos.
Quanto à hipotética terceira razão, e pelo que nos é dado saber pessoalmente, parece-nos pouco plausível. Chegámos a ver das mãos do sr. Reynaud alguns magníficos desenhos, cópias em papel marion, das várias alternativas de decoração para a estrutura daquela importante obra de engenharia – vimos uma extravagante decoração mourisca, uma outra em estilo gótico e alguns estudos desenvolvidos em renascença. Não sabemos agora qual a versão final adoptada, sabemos no entanto que está encarregue da feitura dos painéis metálicos decorativos a firma Cardoso d’Argent & Cia, e sabemos que até há algum tempo tudo era compatível. Aproveitava mesmo o sr. Reynaud os contactos com a referida firma, então em ensaios para a fabricação dos tais painéis, para ali mandar executar algumas peças para as obras que dirigia aqui em Figueiró. Podemos mesmo assegurar que o grande janelão já instalado no telhado do atelier do sr. Malhoa e algumas outras serralharias tiveram tal origem.

Um dos desenhos do sr. Reynaud, cópia em papel marion, para o «Ascenseur du Carmo à Lisbonne: Vue latérale projetée dans un plan paralléle au plan vertical passant par l'axe de rue Stª Justa; Echelle 1/100» e com as seguinte indicação «Projet de Raoul Mesnier du Ponsard (Ingénieur); Décoration de Louis Reynaud (Architecte)». Trata-se de uma das versões, a de carácter renascentista, que o sr. Reynaud em tempos nos mostrou. [2] 














De qualquer modo, o facto de o sr. Reynaud se ter ausentado tem causado incómodo e alguns comentários pouco abonatórios e em surdina.
E deu-se o caso pela última lua nova, bem tarde na noite, na encruzilhada dos castanheiros ali ao Areal: a este repórter foi dado surpreender um grupo de mulheres em estranhas rezas e ladaínhas. Não podemos afirmar com todas as certezas quem elas eram, pois estava breu e todas de capote e lenço, mas não devemos andar longe da verdade se dissermos que seriam algumas senhoras - diz o povo «de certas virtudes» - ali do Cimo da Vila. Abalaram mal se viram descobertas. Mas antes, no meio das lenga-lengas, deu para perceber que pronunciavam o nome do falado sr. Reynaud e prognosticavam coisas como: «deixado no esquecimento» e, no futuro, «o seu trabalho olvidado por todos», de historiadores até seus pares da Associação dos Architectos…
Não acreditamos em tal esconjuro, até porque o trabalho do referido senhor vale por si. Nem cremos que as «virtudes», ao que se diz, de tais senhoras valham assim tanto. Mas, nestas coisas, nunca se sabe… FdT.



«À Paris!»
França, Junho 1904 (correspondente) – Já se encontra instalado em Paris o sr. José Simões d’Almeida, jovem e promissor escultor nascido em Figueiró dos Vinhos, recente vencedor de uma das bolsas do Legado Valmor destinadas à prossecução de estudos artísticos na Cidade Luz, onde chegou no passado dia 7.
Concluído o curso de Escultura na Academia de Lisboa, onde foi brilhante aluno do conhecido estatuário, seu tio, seu homónimo e também ele filho de Figueiró, José Simões d’Almeida, este, o sobrinho, irá durante os próximos dois ou três anos aperfeiçoar a sua arte junto dos maiores mestres franceses. Desejamos-lhe as maiores felicidades e proveitos nessa estadia. FdT.


Grupo de artistas portugueses em Paris. O sr. Simões d'Almeida (sobrinho) é o primeiro da esquerda, com a bengala na mão e identificado com o nº1. Destacam-se ainda: o sr. Costa Motta (sobrinho) com o nº2,  o sr. Acácio Lino com o nº5, e o sr. Sousa Lopes com o nº 9, entre muitos outros.

A gravura que publicamos mais acima representa «La Gaité», uma placa em gesso patinado realizada, neste mesmo ano de 1904, pelo sr. Simões d'Almeida (sobrinho) e com dedicatória «ao ex.mo sr. C. J. de Lima».





















   

Jun. 2014. LBG

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[1] Gravura publicada originalmente no jornal lisboeta O Século, de 18 Julho 1897.
Reprodução semelhante e recente por Miguel Portela in Cadernos de Estudos Lerienses (vol.1). Leiria: Textiverso, 2014. p.24.
[2] Cópia do Arquivo Histórico da CMLisboa, publicada no catálogo Lisboa de Frederico Ressano Garcia: 1874-1909. Lisboa: FCG; CML, 1989.