domingo, 29 de junho de 2014

Uma questão de nervos (ou datas)

ou como o lifting pode borrar a pintura


Em Analyze that (2002), Paul Vitti (Robert de Niro) o mafioso nova-iorquino de Analyze this (1999) [Uma questão de nervos] está preso e à beira de um esgotamento nervoso que o deixa quase catatónico. É-lhe dada liberdade condicional sob custódia do seu psicoterapeuta, Ben Sobel (Billy Crystal). O psiquiatra procurará chegar ao fundo da psicose do seu peculiar paciente enquanto o tenta integrar de novo na sociedade e longe do crime… ou antes pelo contrário.
Às tantas, Vitti experimenta o emprego de vendedor de automóveis e esclarece um casal sobre todas as virtualidades de um novo Audi, incluindo o excepcional tamanho da bagageira onde «se podem meter à vontade uns três cadáveres…». Como os compradores não pareçam muito interessados, o empenhado vendedor insiste e força o diálogo: - «E… que carro é que têm agora?» - «Um Lexus…» - «Ou seja, um Toyota.» - «É um Lexus!» - «Toyota, Lexus, é basicamente a mesma coisa, tudo treta japonesa… (e não esqueçamos Pearl Harbor)».


            Na passada semana deu-se a vernissage da nova exposição no chamado Museu e Centro de Artes de Figueiró dos Vinhos.
Um ano após a sua inauguração, então com duas interessantes exposições, já aquiaqui e aqui faladas, previstas para durarem três ou quatro meses e que vicissitudes várias e, assinale-se, a muito boa vontade das instituições e dos particulares detentores das obras expostas obrigaram e permitiram o seu sucessivo prolongar por todo um ano, finalmente nova mostra está ali patente. Esta é igualmente uma interessantíssima exposição.
Denominada «Os Caminhos do Naturalismo em Figueiró dos Vinhos», reúne cerca de quatro dezenas de peças, entre escultura, pintura e desenho, dos autores figueiroenses, por nascimento ou adopção, José Simões d’Almeida Júnior, Manuel Henrique Pinto, José Malhoa e José Simões d’Almeida (sob.º), e ainda um pequeno desenho de arquitectura de Luiz Ernesto Reynaud – um dos alçados para a ampliação do Casulo de Malhoa. Oriundas dos mais importantes museus nacionais e de várias colecções particulares, encontramos ali, pela primeira vez em muitos anos e lado a lado, obras de grande interesse e que vale a pena ver em diálogo. A mostra prolonga-se até ao dia 28 de Setembro e merece uma visita atenta.
Não vale por agora falar do estupendo mármore de Esperança e saudade, 1887, de Simões d’Almeida Júnior – até há pouco esteve lá o gesso patinado, mas este agora é outra coisa! Nem interessa por enquanto referir a feliz reunião de três dos quadros – A caça aos grilos, 1891, Adormecido, 1891, ambos de Manuel Henrique Pinto, e Primeiras tentativas, 1891, de José Malhoa - que deram origem à esdrúxula formulação da «Escola de Figueiró dos Vinhos» [1] . E tal «Escola» ultimamente tão falada, por mais voltas que se queira dar, não terá tido mais que dois mestres e dois discípulos: o sr. Malhoa e o sr. Pinto, o Zé e o Manel. Cabe tão pouco alertar para a possibilidade única de ver ao vivo a magnífica Varanda florida, 1930, de Malhoa, e de perder algum tempo a descortinar o rasto do gato dali erradicado, ou a comparar o resultado final da desgatização com esta foto original de 1931…


          Ou sequer falar da soberba À Lareira (provando a panela), c.1902, de MHPinto, que encantou D. Carlos. Ou do surpreendente Retrato de minha mulher, 1914, de Malhoa e que este fez questão de oferecer ao Museu [2]  logo após a morte dela. Ou da elegante e quase desconhecida Cabeça de estudo | Botão de rosa, 1925, de Simões d’Almeida (sob.º), um mármore encantador. Só por estes, ou cada um de per si, vale bem uma visita.


O que nos traz aqui hoje - a origem da minha questão de nervos - são dois outros quadros de Malhoa. Dois quadros menos falados e que nunca tinha visto ao vivo.
Bem sei que as inaugurações são más ocasiões para se verem as coisas – por isso evito-as sempre que posso – há sempre algo que nos distrai, uma conversa a despropósito, uma observação interrompida. Obrigam-nos sempre a uma segunda visita. Mas já deu para ver. E, nestas coisas, julgo que os meus olhos me não enganaram. Antes pelo contrário, surpreenderam-me. Porque me mostraram que as datas registadas pelo Pintor são diferentes das escritas nas tabelas. Uma vez é distração, duas já é demais. Fiquei a matutar no assunto. E decidi ir ver…

Um dos quadros da questão é esta Paisagem, «1889»[?], um óleo s/ madeira, 23,5x41,5 cm, do acervo do Museu do Chiado, legado de D. Emília Bordalo Pinheiro, viúva de Columbano, em 1945. Um quadro, portanto, da colecção de Columbano, uma possível oferta entre colegas dos tempos do Grupo do Leão.


Conhecido de várias publicações, não me recordo de o ter visto cara a cara. Ou então lavou a cara, que as cores são completamente diferentes das reproduções. É uma interessante pintura. O problema é que eu, em vez do anunciado «1889», olhando com atenção para o que Malhoa ali assinalou, leio 1885. E não é só a data: é a assinatura - que vai subtilmente variando ao longo dos anos e não confere -, é o tipo de pintura – parece-se com algo que já se viu algures… Há ali qualquer coisa que não me “cheira”. Estarei enganado?


Como disse, fui ver… Fui ver o que foi escrito antes, o que dizem os mestres, os que têm outras obrigações e são pagos para isso. Fiquei satisfeito: é que, afinal, não sou só eu e a minha máquina fotográfica a vermos 1885. É também o Prof. França, em 1983  [3], e até a minha amiga Mª de Aires Silveira (a comissária [4] desta excelente exposição, havia esquecido de o referir) que em 1994, num ajuizado juízo que vale a pena reler [5], também o dão como de 1885.


Porque mudou? Que se terá passado? Certo é que década e meia depois, na nova edição do catálogo do MNAC [6], a coisa “vareia”: se no repetido ajuizado juízo de MAS tudo se repete, incluindo a acertada data de 1885, já a ficha da fotografia que acompanha o texto disparata um surpreendente «1889»!? ilusão de óptica? gralha tipográfica? ou, simplesmente, porque sim? Depois, já se sabe, tal como se não olha para os quadros também se não olha os textos, e o mais fácil é copiar as fichas. Num pulo a coisa passa para a “nova bíblia”, onde o que está escrito é a “palavra”. Até a Matriz se converteu.

Ora, tal como um Lexus não é bem a mesma coisa que um Toyota, também neste caso 1885 é bem diferente de «1889». Não se trata apenas de tirar uns quatro anos uma velha tábua que «basicamente não passa de mais um Malhoa». Não. Ao considerarmos a data correcta de 1885 – e nisso julgo estar em boa companhia – podemos e devemos enquadrar esta Paisagem entre as obras apresentadas na 5ª Exposição de Arte Moderna. Acontece que é nesta exposição que Malhoa apresenta uma série de quadros, não pintados em Figueiró como passou a ser hábito após 1883, mas na região vizinha do Pedrógão Grande. E isto faz toda a diferença!
Atendamos agora mais à pintura – na verdade o mais importante – à pincelada, ao modo de fazer. E comparemos com Aldeia do Gravito, 1885, um dos que temos a certeza de ter estado na 5ª do Leão, um dos tais da incursão pelo Pedrógão. Façam o favor de olhar! (...) Percebem o que quis dizer anteriormente? Até as assinaturas são quase iguais!
É pois com grande probabilidade que estaremos perante uma Paisagem pedroguense, perante um dos quadros da Exposição de Arte Moderna de 1885. Embora perceber qual deles é, seja missão praticamente impossível.

(Datá-lo, pelo visto erroneamente, de «1889» é trapalhada que só serve para não mais sabermos como o ordenar…)



Mas deixemos por agora o assunto Pedrógão Grande, que é tarefa agendada, a pedido, a tratar proximamente…

E passemos então ao outro.
«Paisagem com Abóboras, 1898»[?], é um óleo s/ tela, 36x66 cm, assinado e datado, pertença de colecção particular. Estas são, ao que julgo, as escassas e praticamente repetidas referências até agora existentes sobre a obra nas duas publicações  [7] onde se encontra reproduzida. A tabela da exposição repetirá, evidentemente, mais ou menos o mesmo.



É uma bela duma pintura, de boa composição, fortemente marcada pela tensão das diagonais do aboboral com a dos casebres laranja, onde um céu com nuvens bem recortadas mas luminoso projecta belos contrastes de claro-escuro sobre as terras de amanho. E seria pouco mais que isto, «basicamente mais um Malhoa», um bom Malhoa é certo, mas um Malhoa anónimo de «1898», sem mais história…
Acontece que eu vi outra coisa. Em primeiro lugar vi uma pintura bem diferente daquelas dos anos noventas e tais, depois olhei melhor e vi o que o Malhoa lá deixou para nós vermos: uma assinatura, que me pareceu algo mais antiga que o anunciado, e um um e três oitos – juro que vi! E um um e três oitos quer dizer 1888.
Mais uma vez, o problema não está em querer tirar algumas rugas às vetustas abóboras – dez aninhos a menos numa velha tela com cento e vinte e tal anos é quase nada. Mas assim, a trouxe-mouxe, no mais-ou-menos, o único que se consegue é uma entradita a mais lá naquela coisa, no “breviário”, no dito “catálogo razoável” ou como se lhe queira chamar; mais uma entre uma série de entradas absurdas que volta e meia vamos encontrando, qual “milagre da multiplicação dos malhoas”, e cujo destino é ir riscando à medida que se vão descobrindo… hoje foram mais duas, qualquer dia arrancam-se folhas.
Ora, a ser verdadeira a data de 1888, facilmente se chega à conclusão que esta tela corresponde a um quadro exposto na 8ª do Leão (1888-1889) e assim referido no respectivo Catalogo Illustrado: «42 - O aboboral – 67$500». E, fazendo fé no que nos diz João Sincero na crónica  [8] referente à 2ª Exposição do Grémio Artístico (1892), o mesmo quadro voltou então e de novo a ser exposto. Consultado o catálogo de 92, temos: «102 – As abóboras – 67x37 – 45$000». Se aqui as dimensões praticamente coincidem (um centímetro a mais é desprezível) e no anterior coincidirá a data, com quase toda a certeza estaremos perante o referido quadro.
(O mais triste é que tudo isto o tal sabia e até lá tem uma entrada boa à espera de “boneco” - mas não acerta!… É o que dá não olhar para os quadros!)
Esqueçamos portanto «Paisagem com Abóboras, 1898», coisa que nunca existiu. Esta tela, agora à mostra em Figueiró, sempre teve nome e sobrenome, e registo de nascimento passado pelo sr. João Sincero – O aboboral (ou As abóboras), 1888 – e assim é que é bonito.

Já não faz bem é o pendant idealizado com O amanho das abóboras, 1897, de MHPinto, pois já não são seguidinhos. O amanho… de Pinto, já se sabia, tem antes a ver com outras coisas, principalmente quanto ao amanho das telas… Mas por enquanto, pelo menos visualmente, as abóboras continuam das amarelas.

E é assim, graças a uma bela Exposição organizada por Mª de Aires Silveira em Figueiró dos Vinhos, que estes dois quadros de Malhoa voltam a entrar na ordem. 
Repito o que disse acima: não se esqueçam de ir ver a exposição - e, já agora, de olhar para os quadros! Vale a pena e vale a viagem.


Eu, entretanto, vou enfiar um prozac… Ou dois copinhos de vinho branco, que «é basicamente a mesma coisa».


De Niro: « You’re good, Doctor !  You’re good !  You’re very good, you ! »

 29 Jun. 2014. LBG



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[1] ARTHUR, B. Sesinando Ribeiro - Arte e Artistas Contemporaneos, (1ª serie). Lisboa: Livraria Ferin, 1896. p.195,196 – A segunda exposição do Gremio Artistico. (Reproduzindo artigo anterior, publicado na imprensa da época, 1892)
[2] Museu Nacional de Arte Contemporânea, actualmente ...e do Chiado, entenda-se. Doação feita ainda em 1919.
[3] in catálogo Cinquentenário da Morte de José Malhoa (vol.1). Lisboa: IPPC, 1983. p.68
[4] Que me desculpem, mas prefiro o termo afrancesado, com conotações de hierarquia náutica, «…a quem é dada importante missão», à formulação anglo-saxónica que cheira a éter e sulfamidas. Um tipo imagina logo as couves galegas deste, ou as abóboras do outro, envoltas em ligaduras e agonizando da cura…
[5] in catálogo Museu do Chiado: Arte portuguesa 1850-1950. Lisboa: IPM,1994. p.90 e 91.
[6] Arte Portuguesa do século XIX: 1850-1910. Lisboa: MNAC-Museu do Chiado, 2010.
[7] José Malhoa. Bologna; Lisboa: FMR-Art’è; Arting Editores, 2008. p.175. e SALDANHA, Nuno – José Malhoa, 1855-1933: Catálogo raisonné. Lisboa: Scribe, 2012. p.49.
[8] in O Occidente, nº 482, de 11 de Maio de 1892, p.107.
Nota à nota: 11 de Maio e não «13». Irra! que até nas referências bibliográficas a coisa é trapalhona. Acho mesmo que é de propósito… para me dar cabo dos nervos.

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