sábado, 31 de dezembro de 2016

Galos, galinhas e aves de arribação

A propósito do centenário de Girão

José Maria de Souza Moura Gyrão (1840-1916), antes do mais Pintor, desde a primeira hora um dos “do Leão”, com direito a retrato no celebrado «quadro da cervejaria» e tudo, participante em quase todas as oito exposições do Grupo (falhou a 7ª), nasceu em Lisboa em Agosto de 1840, filho de Alexandre de Sousa Moura Girão, alferes de Infantaria. [1]


Morreu Girão, aos 76 anos de idade, na Rua de São Gens, nº35, à S.ª do Monte em Lisboa, a 1 de Novembro de 1916. Tendo sido sepultado, com relativa pompa de circunstância, nos Prazeres. Não obstante - diz-nos Nunes Corrêa - «acabaria, mais tarde, na vala comum».
Premonitoriamente, logo em 13 de Novembro desse ano, n’O Século Cómico, «Belmiro» dedicava-lhe estes versos amargos:











































E, na mesma edição, a Illustração Portugueza publicava a seguinte nota:



Quer tudo isto dizer que neste ano de 2016, mesmo mesmo quase, quase a findar, se comemoraria o Centenário da morte do Pintor Girão.
Comemoraria[2]. Porque não vi - mas isso sou eu que sou um bocado distraído – de entre os proclamados «especialistas do século XIX», dos variados guardiães do temp(l)o, das instituições que o guardam, ou mesmo doutros escrevinhadores de circunstância, uma linha sequer a tal propósito. É natural. É coisa que não interessa nada.
Desde que o Mestre (no caso, pouco divino) resolveu ao correr da pena (des)classificar uns três dos “do Leão” - «… são os menores» - e, mais tarde, uma qualquer francesinha sem molho, mais pressurosa, arrematar superlativamente com um - «os menoríssimos…» -, o pobre do Girão tem permanecido num limbo (o que, diga-se, é bem pior que um purgatório – ali, ao menos, pena-se, mas pode-se de lá sair… do limbo nunca mais se chega ao céu). Girão nem é dos bons, nem dos maus; ganhou algum gosto do público, um certo valor de mercado, mas não vai muito além do galinheiro… - pra esta gente é assim, e pronto.

José Moura Girão cursou a Academia de Lisboa, onde terá sido «discípulo de Tomás da Anunciação e de Miguel Lupi» (curiosamente, ao contrário do então em uso nos catálogos, nunca se refere como «discípulo de f. ou s.» e só mesmo raramente aparece como «discípulo da Academia das Belas-Artes»). «Formado no academismo, adaptou-se pouco a pouco aos processos realistas da pintura» - dir-nos-á Pamplona.
Sempre referido como «o mais velho» dos do «Grupo do Leão», convém recordar que efectivamente Girão tinha dez anos mais que Silva Porto (1850-1893), década e meia sobre Malhoa (1855-1933), e mais dezoito que Ribeiro Cristino (1858-1948), dito «o mais moço» do Grupo inicial. Era mesmo mais velho que Simões d’Almeida, o tio (1844-1926), o qual da maioria dos do Grupo fora Mestre e de quem Girão chegou a ser condiscípulo. Aqui os vemos numa fotografia com «o curso de desenho na Academia de Bellas Artes em 1865». [3]

Da esquerda p. a direita. De pé: Silva Janota, Silva Orense, Sabino, Felix da Costa, Accácio, Moreira Rato, Simões d’Almeida (de bigode e pera), e Moreira.
Sentados: Pires, Antonio José Nunes Junior (que foi director da Academia), Elloy d’Almeida, Braz Martins [4], Anníbal, e Gyrão (este a ler um livro).




Não se sabe ao certo qual foi verdadeiramente o percurso académico de Moura Girão, se longo ou entrecortado… Contudo, a frase aparentemente contraditória em termos cronológicos - «…fizera o seu curso na Academia de Bellas Artes de Lisboa, no tempo de Malhôa, Columbano, Simões de Almeida, Monteiro, Nunes Junior e Felix da Costa…» - misturando gerações bem diferentes, pode não ser assim tão disparatada. Se acima o vimos com os colegas do «curso de (…) 1865», também o vemos agora acamaradando com uns jovens «rapazes ainda todos» quase uma boa década e meia depois:








Nesta foto, já antes aqui mostrada, vemos: Rodrigues Vieira, Girão, Veríssimo, Henrique Pinto, João Vaz, e Malhoa (este sentado no chão e de chapéu). Todos colegas da Academia, todos (à excepção de Veríssimo) membros iniciais “do Leão”. Desconhecem-se as circunstâncias e a data do registo, mas deverá ser de finais da década de setenta, talvez bem perto de 1880 (Malhoa, aqui quase imberbe, casar-se-ia em 29 de Janeiro de 1880…).

            Assim sendo, não é de espantar que Girão venha a ser um dos integrantes da primeira hora do «Grupo do Leão».
Participa em 1885 na decoração da nova cervejaria de Monteiro, então sim o «Leão d’Ouro», com «um quadro de primeira ordem, onde uns bonitos coelhos em sucia róem folhas de couve vorazmente, dentro de uma capoeira espaçosa, emquanto que um altivo gallo, d’uma naturalidade admiravel, olha d’alto empoleirado n’umas grades, tendo ao lado a passiva gallinha aninhada e uma pequena cascata de hervas pendentes, salpicadas de floritas». Tal como de novo colaborará, vinte anos mais tarde, em 1905, para a nova sala do restaurante com um tríptico então assim descrito: «n’um suave poente destaca-se uma cortina de alvenaria tendo estendido um bello chaile de seda amarella  sobre o qual dois pombos arrulham; ao longo pinheiros, plantas no primeiro plano e á direita uma florida olaia alindam a paysagem».

Ambas as descrições são de O Occidente - cada qual na data própria, como é evidente. E o tríptico de 1905  (o que estava à esquerda de quem entra, logo a seguir à Apoteose da Lagosta do Malhoa , na sala hoje já cortada a meio pela copa, lavabos ou coisa que o valha da sala do lado...) é, sem dúvida alguma, este: 
       (aqui numa foto com as telas ainda por restaurar, amareladas por décadas do ambiente de fumo da velha cervejaria)

Pombos, 1905. ost 107x190.









      
          E o outro, o de vinte anos antes (o da outra sala, agora "vestida" de preto, o que estaria onde hoje se vislumbram umas airosas e falsas cabeças de tonel), se não é este, deveria andar lá perto…

Uma capoeira, 1885. ost 199x124.





































                          Vale ainda a pena a leitura do artigo, meio entrevista meio biográfico, publicado em Abril de 1907, na Illustração Portugueza (a ler aqui e nas 4 pág. sequentes). De leitura agradável, ali podemos ficar a saber mais sobre a vida de Moura Girão, então já Pintor consagrado. Do seu trabalho como restaurador do Museu Nacional de Bellas Artes (actual MNAA); das e dos seus muitos discípulos e discípulas; das suas paixões - pela vida militar e pelos toiros (embora não gostasse de ir ás toiradas); do seu amor pelas capoeiras e pelas emplumadas criaturas; algumas estórias de quadros e pinturas, com galos e outros bichos; mas, acima de tudo, podemos perceber melhor quem era este homem, modesto, bom e de labor incansável.
            Da leitura, apenas duas notas:
A primeira sobre o discipulado, onde é de destacar Helena Gomes, uma das primeiras «Senhoras Leoas» a expor com o Grupo logo em 1885, obviamente levada pela mão do Mestre Girão.
A segunda, sobre a divertida estória do encontro entre Girão e outros pintores numa jornada de “ar-livre” em plena Mata do Bussaco. Às tantas, diz o articulista, Girão «…vê aparecer nitidamente a figura de Silva Porto, Malhôa, Christino e Rodrigues Pinto». Ora, este misterioso e completamente desconhecido «Rodrigues Pinto», pela certa, de uma, duas: não será outro que o Henrique(s) Pinto ou, eventualmente, serão mesmo dois – o Rodrigues (Vieira) e o dito (Henrique) Pinto. Coisas…

No Bussaco. 
Apontamento a óleo de Girão que teria sido realizado no encontro  referido na estória. 
«De costas, mestre Silva Porto pintando».[5]





            Bom. Mais que conversa, interessam os quadros, a obra de Moura Girão. Ficam aqui mais alguns apontamentos. Paisagens - que como era natural Girão começa por aí; um auto-retrato; e bichos... muitos bichos. 
              E com títulos que são também alguns deles uma pequena delícia.


Paisagem de Sintra, 1884. osm 22x13. 


































Portinho da arrábida, 1881. osm 12x23.















Patos no lago, 1883. osm 42x30.


Auto-Retrato. n.d. ost 45x37.



















































.












Uma tentação, 1883. osm 44x28.
Galinha e nove pintos, 1887. osm 19x29.



































Esquecida, 1897. ost 45x30.






















Rivais, 1898. ost 195x120




































Liberdade, 1902. ost 28x23.




























Coelhos, 1903. ost 40x27.






















Em família, 1904. osm 150x100.






















Pintaínhos, 1907. osm 32x27.

Dealbar, 1906. ost 14,5x25.


Novos amores, 1908. ost 163x130.











    
  
Viva a República!, 1910. ost 45x35.




Girão em 1910 junto ao quadro 
Viva a República!
















...e no atelier do Museu Nacional de Bellas Artes, c.1907, com um dos seus modelos.















Rebanho de ovelhas ao pôr-do-sol, 1915. aguarela s/ papel.
  

            E foi o que se pode arranjar.
Mas Girão e a sua obra mereciam mais. Agora, com tanto Mestrado, pós-Doc e o diabo a sete, bem que alguma alminha se podia dedicar a isto…

            Até pró Ano! Que sejamos todos felizes!



31 Dez. 2016. LBG
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[1]. Segue-se, no essencial, no que toca aos dados biográficos, a parte das imagens e catalogação das obras, o estudo, aparentemente simples mas consciencioso, de CORRÊA, Manuel Nunes, Moura Girão (1840-1916). Edição do Autor, Lisboa, 1983.
(Embora alguns dados possam parecer algo incoerentes, designadamente algumas medidas das telas, opta-se por os reproduzir como no livro.)
[2]. Tal como também se comemoraria neste ano o de António M. Ramalho Júnior (Barqueiros, 1858 – Figueira da Foz, 1916). Mas essa já é uma outra praia…
[3]. Foto publicada na Illustração Portugueza, nº59, 8 Abr.1907. É também reproduzida, tal como a legenda original, por Nunes Corrêa no livro referido.
[4]. Já agora, convém também perceber que este «Braz Martins» não será outro que o José Joaquim Cipriano Martins («filho do actor Brás Martins») e que também iremos encontrar no quadro de Columbano «O Grupo do Leão». Será o primeiro do Grupo a falecer, logo c.1888. É outro sobre quem pouco se sabe, desconhecendo-se mesmo a data do seu nascimento, e encontrá-lo aqui instala a dúvida sobre quem seria na verdade «o mais velho» dos do Leão…
A legenda da foto foi adaptada, mantendo os nomes a grafia original.
[5]. A propósito, uma perguntinha inocente: alguém me poderá explicar como é que, invariavelmente, sempre que em qualquer quadro, desenho ou apontamento desta época aparece representado, nem que seja num vulto indistinto, um pintor a pintar,  tal personagem «é» sempre, inevitavelmente, o Silva Porto?! Caramba! o bom do homem devia ser omnipresente!?

sexta-feira, 10 de junho de 2016

Porque hoje é Dia do “Coiso”

(o postal do Veríssimo)


Prometi mostrar, aqui atrasado, quando falámos do António Carlos, o verso de um postal que Veríssimo José Baptista enviou em 24 de Março de 1907 a Malhoa. Na altura mostrei a frente, porque reproduz precisamente a Cabeça do António Carlos, 1903, ou Cabeça de Velho (ou também chamado O Regedor), já então na colecção de J. Relvas.
Hoje é um bom dia para cumprir a promessa e revelar o resto. Porque hoje é Dia do “Coiso”.

O postal, dirigido ao «Exmº Snr José Malhôa», então morador na «Avenida Antº Maria d’Avelar», é simples e conciso:

«O coiso – nasceu 1525 + 1579 [1] foi ferido [mostra o desenho de um olho] direito em 1545 ou 1547 era soldado raso ferido n’uma escaramuça em Ceuta | Tomada Ceuta 1415 | Servirá? – | Veríssimo | 24-3-907».



Como facilmente se percebe, esta é uma missiva que apenas se manda aos Amigos, e aos mais íntimos. Daquelas onde não é preciso dizer grande coisa que já sabemos que o outro entende o resto. É das que eu gosto.


João Rodrigues Viera (1856-1898), 
José Moura Girão  (1840-1916), 
Veríssimo José Baptista (?), 
Manuel Henrique Pinto  (1853-1912), 
João Vaz (1859-1931) e, 
em baixo, José Malhoa (1855-1933). 
Todos condiscípulos 
da Academia das Belas Artes. 
Todos, 
à excepção do amigo Veríssimo 
que trocou os pincéis por outra vida, 
membros do futuro Grupo do Leão.

Uma foto de
«J. Loureiro, Fº, Calçada do Duque, 18».

O Veríssimo era, talvez mesmo a par do Manuel Henrique Pinto, dos maiores amigos de Malhoa. Colegas na Academia - e aqui está ele nesta fotografia que será anterior à formação do Grupo do Leão - ficaram amigos para a vida. Veríssimo abandonou logo os pincéis, terá arranjado emprego estável na Companhia dos Caminhos de Ferro. Mais de uma vez, em ocasiões diversas, Malhoa lamentará o facto, referindo-se sempre a ele como um condiscípulo promissor. Depois os contactos passariam a ser esparsos - não era preciso mais, a forte amizade era tudo. 

Em 1910, Malhoa pintar-lhe-á o Retrato. Um grande retrato, o último da série em que retrata os amigos mais chegados em poses e trajos à le dix-septième siècle. Um retrato que, em 1911, leva mesmo ao Salon de Paris.
(Mas isto é uma outra história, e fica para uma outra vez…)


Aqui neste postal, como bem se entenderá, Veríssimo responde a um pedido de ajuda de Malhoa, então às voltas com a investigação histórica sobre a figura do “Coiso”.
Andava, por essa altura, Malhoa muito atarefado com as encomendas para o Museu Militar. E a recolha de toda a informação possível para uma justa feitura das obras era coisa que ambos haviam aprendido nas aulas de Pintura Histórica. Nessa busca, Malhoa também deverá ter tido notícia de um outro documento, datado de 1550, que diz o seguinte: « …filho de Simão Vaz e Ana de Sá, moradores em Lisboa, na Mouraria; escudeiro, de 25 anos, barbirruivo, trouxe por fiador a seu pai; vai na nau de S. Pedro dos Burgaleses... entre os homens de armas» [2].

E foi assim, pelas graças do “olho” do Veríssimo e do tal documento que o diz «barbirruivo» que o “Coiso” de Malhoa terá ganho muitas das suas acertadas características.

Aqui fica ele, 
Camões, 1907, 
o sublime, 
o grande poeta 
Luís Vaz de Camões. 
Pela mão de Malhoa, 
na versão final 
existente 
no Museu Militar, 
e num estudo 
a carvão do acervo 
do Museu José Malhoa.

Mas também 
na sua Poesia, 
 umas belas 
pinceladas
 na nossa Língua.












Termino
como Veríssimo:
- «Servirá?»


Perdigão perdeu a pena
Não há mal que lhe não venha.

Perdigão que o pensamento
Subiu a um alto lugar,
Perde a pena do voar,
Ganha a pena do tormento.
Não tem no ar nem no vento
Asas com que se sustenha:
Não há mal que lhe não venha.

Quis voar a ua alta torre,
Mas achou-se desasado;
E vendo-se depenado,
De puro penado morre.
Se a queixumes se socorre,
Lança no fogo mais lenha:
Não há mal que lhe não venha.

(Luís de Camões)





10 Jun. 2016. LBG

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[1]. Hoje em dia ainda não há certeza quanto às datas quer do nascimento quer da morte do Poeta. As opiniões variam: 1524 ou 1525, e 1579 ou 1580.

[2]. A parte da nau parece que não chegou a ser, pelo menos daquela vez… terá ido noutra, para a Índia, bem entendido.